quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Carlos Gonzalez

A partir do desdobramento de estudos de desenho feitos em cadernos pessoais, o artista Carlos Gonzalez desenvolveu dois vídeos intitulados “Heterossexual come macarrão com carne I” e “Heterossexual come macarrão com carne II”, em que trabalha com o processo da construção da percepção pela registro de uma ação do próprio artista.

O primeiro vídeo revela uma ação que se desenrola num espaço de caráter privado, voltada para a ordem do improviso e que discute o lado “animal” presente no comportamento humano.

O deslocamento do objeto cadeira de seu contexto comum de funcionalidade é o fator inicial necessário para a leitura da obra: essa está no espaço para servir a funções diversas que não apenas a de substituir os membros superiores do artista. Com esse deslocamento, o artista constrói extensões em seus braços, que remetem a instrumentos usados em estudos de desenho, durante o processo de construção das formas.

O título se revela como ponto de caráter literal e explicativo em relação à ação como um todo: ao usar o termo “heterossexual”, põe em questão o estereótipo da figura do “macho”, como aquele indivíduo dotado de virilidade, que devora, literalmente, um prato de macarrão com carne.

Em meio à combinação de tais elementos, surge um novo valor que faz a ligação entre eles: a música. O elemento sonoro, que remete a músicas de circo, traduz a situação do artista quase como desempenhando uma aberração, ao redor da qual o público se aglomera, a fim de desfrutar do “freak show”. Além disso, o elemento sonoro acaba por preencher o espaço, como se construísse seu próprio picadeiro, ao envolver o espectador como platéia e testemunha da ação.

Do outro lado, o segundo vídeo, mesmo sendo uma seqüência do anterior, segue um viés bem diferente, já que, dessa vez a ação se dá como uma “coreografia”, uma seqüência de movimentos preestabelecidos. Nesse trabalho, o título se mostra como um elemento completamente sugestivo: o ato de comer a carne pode ser entendido como o ato do artista de se aproximar e desfrutar do corpo da garota de programa.

Além disso, a presença agora do termo “heterossexual” e o fato do artista trajar roupas íntimas femininas trazem a tona um questionamento sobre os gêneros feminino e masculino, ou seja, em tal local, de caráter “underground”, o indivíduo revela sua outra identidade/personalidade. Ao se vestir de mulher, recupera também a questão dos fetiches, dos desejos íntimos e das fantasias sexuais do Homem, quando se encontra longe do olhar observador do outro.

Como referência, pode-se levar em conta a relação com o Cabaré Voltaire, criado por Hugo Ball, que mais tarde impulsionou o surgimento do dadaísmo e se traduzia num espaço secreto, de acesso restrito, que servia de “refúgio” para os artistas e de cenário para exposições provocadoras e performances escandalosas. O Cabaré Voltaire proporcionava condições para a liberdade artística e para experimentações. Frente a isso, o artista apresenta sua ação como um objeto anti-artístico que busca colocar em discussão padrões estéticos e colocar à prova os limites de percepção, recepção e aceitação do público perante essa.

Apesar de parecer convincente o percurso feito durante todo o processo, a escolha do espaço público tão específico, cenário do segundo vídeo, parece ter fugido do caráter da proposta inicial, já que a oposição entre o privado e o público se mostrou um tanto quanto díspar: a passagem de um vídeo para o outro se fez quase como um grande salto, desnorteando o espectador sobre o porquê da ação e do território povoado por essa. E indo mais além, a escolha de tal ambiente se mostrou um tanto quanto rasa, já que outros lugares poderiam ter sido explorados como cenário para o desenrolar da ação.


Roberta Campi



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